Judicialização
A saúde consagrada, constitucionalmente, como sendo um direito de todos e dever do Estado, é considerada ao mesmo tempo, um direito social e um direito subjetivo público, permitindo assim, que um cidadão ou uma coletividade exija que o Estado adote medidas específicas em benefício de sua saúde. A elaboração das políticas públicas deve estar em consonância com os ditames da Constituição e dos demais instrumentos normativos jurídicos e busca sempre o interesse público e a proteção e promoção dos direitos, em especial os direitos humanos fundamentais, dentre eles o direito à saúde.
As Políticas Públicas por serem consideradas objeto primário dos direitos sociais e a sua implementação ser o núcleo desses direitos, entende-se que a falta de sua efetividade e concretização é que geram as questões judiciais.
Há várias décadas, desde a sua implantação como política pública, o Sistema Único de Saúde (SUS), no âmbito dos três níveis de gestão, é alvo de inúmeras ações judiciais com o intento de assegurar, ao usuário ou grupo de usuários, assistência à saúde, principalmente, relativa aos procedimentos de alta complexidade e medicamentos de alto custo.
Diante desse contexto, a crença na ideia de saúde como direito, tem aumentado a busca a este bem indispensável, via judiciária, de maneira crescente e cada vez mais frequente em nosso país. A maioria das ações judiciais está fundamentada nos Art. 196 e 197 da Constituição Federal (CF) de 1988, o que vem implicando negativamente na responsabilidade dos gestores do sistema, nas suas respectivas esferas de gestão. No entanto, continua e sistematicamente, são publicados dispositivos específicos para regulamentar o estabelecido na Lei Orgânica da Saúde 8.080/90[1] , que criou o sistema de saúde do Brasil, com a finalidade de orientar os gestores na estruturação do sistema local de saúde, com vistas a oferta da assistência de forma qualificada.
As demandas judiciais vêm acarretando situações adversas aos sistemas de saúde instituído nas diversificadas regiões geográficas do país, em particular, no que tange a disponibilidade aos recursos técnicos e tecnológicos, bem como a oneração dos recursos orçamentários e financeiros destinados ao custeio das ações e serviços de saúde estabelecido nos Planos de Saúde, quer seja Nacional, Estadual, Municipal ou mesmo Regional. E, assim, no Brasil a efetivação judicial do direito à saúde tem induzido a um debate cada vez mais amplo em diversos espaços de discussão do tema.
Assim sendo, a judicialização na saúde poderá comprometer o atendimento aos demais cidadãos, dificultando a implantação das Políticas Públicas de Saúde, devido aos recursos serem gastos também com as demandas judiciais recebidas pelas gestões locais.
Os estudos sobre a judicialização da saúde demonstram os efeitos negativos na governabilidade e na gestão das políticas e ações de saúde no país. Um dos principais pontos, é que este tipo de intervenção no sistema aprofunda as iniquidades no acesso à saúde, privilegiando grupos de indivíduos com maior poder de reivindicação, em detrimento a outros, na medida em que necessidades individuais ou da comunidade seriam atendidas, em prejuízo às necessidades de outros grupos e indivíduos.
Frente a esse cenário, o próprio Poder Judiciário tem se preocupado com a referida matéria, tanto que ao longo dos últimos anos, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) tem liderado e estimulado, de maneira mais sistemática, a atuação do Judiciário, na busca de estabelecer uma política judiciária específica destinada ao setor saúde. As estratégias oriundas dessa política, envolvem desde a criação do Fórum Nacional do Judiciário para a saúde até Comitês Estaduais de Saúde, e também recomendações sobre como os juízes podem decidir as demandas que lhes são apresentadas.
A implantação de boas práticas, como reuniões conjuntas entre Ministério Público e os diversos atores do setor saúde, é de grande importância para a solução de problemas na assistência à saúde, independentemente, da região geográfica do país.
Simultaneamente ao movimento empreendido pelo CNJ, e como forma de esclarecer várias dúvidas, o Supremo Tribunal Federal (STF) realizou uma Audiência Pública entre os dias 27 de abril e 7 de maio de 2009, onde foram ouvidos especialistas, entre advogados, promotores, magistrados, médicos, gestores e usuários do Sistema de Saúde Brasileiro. O principal objetivo foi obter esclarecimentos dos diversos setores da sociedade civil sobre as questões técnicas, administrativas, políticas, econômicas e jurídicas que envolvem o direito à saúde.
Na supramencionada audiência foram abordadas várias questões, como:
a) responsabilidade dos entes da federação com relação a saúde da população;
b) obrigação do Estado de custear ações de saúde não abrangidas pelas políticas públicas existentes; e
c) obrigação do Estado de disponibilizar medicamentos ou tratamentos não registrados na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) ou não constantes de protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas definidos pelo Ministério da Saúde, entre outras.
Seguindo a mesma linha de pensamento do STF, O Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicou a Recomendação nº 31, de 30/03/10[2] para que os tribunais adotem medidas visando melhor subsidiar os magistrados na solução das demandas judiciais que envolvem a saúde. Recomendou, inclusive, que os juízes evitem determinar o fornecimento de medicamentos, ainda não registrados pela ANVISA, e que ouçam os gestores, sempre que possível, antes da apreciação de medidas de urgência.
Importante também referenciar a Declaração oriunda do I Encontro do Fórum Nacional do Judiciário para a Saúde, realizado em 18 e 19 de novembro de 2010. Esta Declaração parte do pressuposto de que a atuação do Judiciário é crucial para o resgate efetivo da cidadania e realização do direito à saúde, mesmo sob o argumento de que do seu exercício advêm tensões com a administração pública. Interessante notar que esta Declaração revela, inclusive, a auto compreensão de que os magistrados possuem uma relevante missão na influência das políticas públicas de saúde.
Fundamentado na declaração acima referenciada, o CNJ estimulou que os tribunais, entre outras medidas, celebrem convênios que objetivem disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos, para auxiliá-los na apreciação das questões clínicas apresentadas pelas partes, observadas as peculiaridades regionais.
Além disso, estabeleceu que os magistrados atuem da seguinte maneira:
a) procurem instruir as ações, tanto quanto possível, com relatórios médicos, com descrição da doença, inclusive CID, contendo prescrição de medicamentos, com denominação genérica ou princípio ativo, produtos, órteses, próteses e insumos em geral, com posologia exata;
b) evitem autorizar o fornecimento de medicamentos ainda não registrados pela Anvisa, ou em fase experimental, ressalvadas as exceções expressamente previstas em lei;
c) ouçam, quando possível, preferencialmente por meio eletrônico, os gestores, antes da apreciação de medidas de urgência;
d) incluam a legislação relativa ao direito sanitário como matéria no programa de direito administrativo dos respectivos concursos para ingresso na carreira da magistratura, além de incorporar o direito sanitário nos programas dos cursos de formação, vitaliciamento e aperfeiçoamento de magistrados; e,
e) promovam visitas dos magistrados aos Conselhos Municipais e Estaduais de Saúde, bem como às unidades de saúde pública ou conveniadas ao SUS, dispensários de medicamentos e a hospitais habilitados em Oncologia como Unidade de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Unacon) ou Centro de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacon).
Em 2011, o CNJ publicou a Recomendação n. 36 [3], que inspirada na Recomendação n. 31, trouxe regramentos específicos para o julgamento de demandas envolvendo a saúde suplementar. Desse modo, ao estabelecer a importância de se oficiar a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e a necessidade de se incluir representantes das operadoras de planos de saúde nos Comitês Estaduais de Saúde, o CNJ deu mais um passo na coordenação de estratégias judiciais para a alegada temática.
Da mesma maneira, o Poder Legislativo também aderiu à causa, elaborando a Lei 12.401, 28 de abril de 2011 [4], que define que a assistência terapêutica integral no SUS, inclusive a farmacêutica, consista em:
1) dispensação de medicamentos e produtos de interesse para a saúde, cuja prescrição esteja em conformidade com as diretrizes terapêuticas definidas em protocolo clínico para a doença ou o agravo à saúde a ser tratado;
2) oferta de procedimentos terapêuticos em regime domiciliar, ambulatorial e hospitalar, constantes de tabelas elaboradas pelo gestor federal do SUS, realizados no território nacional por serviço próprio, conveniado ou contratado.
As ações judiciais permitem aos gestores traçarem os perfis e problemas de saúde mais judicializados, gerando assim informações que podem auxiliar na compreensão dos problemas relacionados à gestão, ao gerenciamento do cuidado, e às possíveis reorientações das práticas de saúde.
Nesse sentido, e com o intuito de intuito de minimizar o problema da judicialização no âmbito da saúde, é necessário adotar uma abordagem multidimensional. Em primeiro lugar, é essencial fortalecer o sistema de saúde como um todo. Além disso, a gestão local deve promover as seguintes estratégias:
- Investir em infraestrutura (física e equipamentos);
- Aumentar a disponibilidade de profissionais de saúde;
- Promover o acesso a medicamentos essenciais; e
- Promover a capacitação e a conscientização dos profissionais de saúde sobre os direitos dos pacientes, para que eles possam oferecer um atendimento adequado e transparente.
Outra estratégia importante é a implementação de mecanismos de mediação e conciliação, com a participação de órgãos de saúde, Ministério Público, judiciário e representantes da sociedade civil. Esses mecanismos podem ajudar a resolver conflitos de forma mais ágil e eficiente, evitando a judicialização desnecessária.
Também é necessário fortalecer a gestão do sistema de saúde, com a utilização de critérios técnicos e científicos para a tomada de decisões sobre a inclusão de novos medicamentos e tratamentos. É importante estabelecer protocolos claros e transparentes, baseados em evidências, para a alocação de recursos e garantir uma distribuição mais equitativa dos mesmos.
Em conclusão, a judicialização da saúde é um desafio complexo que afeta o sistema de saúde brasileiro. A busca pelo acesso à saúde através do Poder Judiciário revela lacunas e falhas no sistema, além de gerar sobrecarga e desequilíbrios financeiros. Impacta negativamente na equidade do SUS, beneficiando aqueles com recursos para recorrer à justiça em detrimento dos mais vulneráveis.
Para enfrentar esse problema, é necessário um esforço conjunto. Investimentos na estrutura e nos recursos do sistema de saúde, capacitação dos profissionais, implementação de mecanismos de mediação e conciliação e uma gestão embasada em critérios técnicos e científicos são fundamentais para minimizar a judicialização. Somente assim será possível alcançar uma saúde equitativa, em conformidade com os princípios constitucionais e os direitos fundamentais dos cidadãos.
Referências
- ↑ Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm.
- ↑ Recomendação nº 31, de 30 de março de 2010. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/877.
- ↑ Recomendação nº 36, de 12 de julho de 2011. Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/847.
- ↑ Lei 12.401, 28 de abril de 2011. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2011/Lei/L12401.htm.